Uma carta do porão da morte em Cizre

por Alliance for Kurdish Rights

Nós trazemos uma carta enviada ao político Curdo-Dinamarquês Serdal Benli da jornalista Curda Asya Tekin que está nos últimos meses na cidade Curda de Cizre, sitiada por forças armadas Turcas que causaram a morte de mais de uma centena de civis. Como outros habitantes, ela está presa na cidade.

A carta chega justamente quando notícias correm contando que as forças armadas turcas bombardearem e queimarem 60 civis até a morte em dois porões separados em Cizre.

Rua Bostanci número 23, bairro Cudi, Cizre…. Este é o nosso novo endereço que nossa consciência não deixa esquecer. Eu imagino quantas pessoas passaram por esta rua. Eu imagino quantas pessoas varreram essa rua tão escura e preta quando caminhavam rua abaixo. Talvez eu tenha passado por aqui. Talvez eu tenha passado por seus tijolos, frios como o gelo.

Os gritos das crianças, das mulheres, os jovens e os pais que estão aqui na rua Bostanci número 23 ecoam em nossos ouvidos. A rua que era cenário de pessoas felizes dançando e cantando é agora centro de uma dor que nunca vai acalmar, nunca irá embora. 28 pessoas estão chorando quando uma voz que vem do telefone grita “Eles chegaram.” Gritos, mais gritos, vozes de mulheres podem ser ouvidas pelo telefone. A voz de uma das mulheres pode ser ouvida sobre as outras. “Desonrados!” ela fala e os gritos de repente param. Agora, todos que ouviram aquelas vozes pelo telefone, fixam sua atenção na rua Bostanci número 23.

A rua é como um poço negro…. o tempo parou. Os cantores das ruas silenciaram. A rua Bostanci está escura. Nenhum choro é ouvido, nenhum grito. Nenhuma voz de mulher gritando “desonrados.” O que ela viu que a fez dizer isso? O que eram aqueles sons, sons como aqueles que vem das armas. A rua Bostanci está escura agora. Escura como um poço negro onde os gritos e choro dos oprimidos não podem ser ouvidos.

Ao invés do nascer do sol, fumaça se ergue de um fogo tão intenso que a humanidade não consegue respirar, eles não podem respirar. A rua Bostanci não consegue respirar. Homens desconhecidos com coletes a prova de balas e capacetes e com armas nas mãos estão invadindo a rua Bostanci. Eles não pertencem a esta rua e não conhecem as crianças da rua Bostanci. Nunca as viram brincar, nunca testemunharam sua felicidade.

É tão fácil ver que eles são estranhos a esta rua quando eles avançam de forma hesitante. Estes muros testemunharão tudo. Estes estrangeiros na rua também tem medo dos muros, vão quebrando um por um com suas armas que não sabemos os nomes.

Nestes dias as paredes tem escondido as crianças da rua Bostanci para protege-las em vão porque aqui estão os estrangeiros, os homens desconhecidos na rua Bostanci.

Os habitantes estão nervosos e cochicham entre eles. O dono do número 23 da rua Bostanci diz que há um poço no porão que foi coberto. Eu espero que o povo perceba; que eles tem bebido água daquele poço. Eu espero que o sol nasça no porão.

Todos os dias, eu vejo a rua Bostanci em meus sonhos e tenho pesadelos sempre que fecho meus olhos: estou em uma jornada e meu destino é a rua Bostanci. Eu estou com minha câmera e meu microfone; estou com minha amiga Asmin que é uma camera-woman. Toda vez que fecho meus olhos, eu estou nessa jornada. Eu chego ao porão na rua Bostanci. 28 pessoas estão deitadas inconscientes sobre paredes destruidas. Apenas alguns conseguem abrir seus olhos. Eu largo minha câmera. “Pare de filmar, Asmin! Dê água! Dê água!” Asmin me alcança água mas ao invés de dar aos feridos do porão, eu bebo. Acordo em uma poça de suor. “Não, a água é para os feridos,” eu digo. Eu me culpo por ter bebido a água ao invés de dar aos feridos.

Kevin Carter vem a minha mente, o fotógrafo sul-africano que tirou a foto de uma pequena menina negra que estava morrendo de fome com um urubu sentado perto. O abutre se foi assim que a foto foi tirada e Kevin Carter também se foi sem ajudar a menina. Mesmo que a fotografia tenha auxiliando organizações humanitárias a coletarem doações, Kevin Carter sofreu uma severa depressão pelo fato de ter deixado a menina. Ele cometeu suicídio. Ou nos tornamos Kevin Carter ou…

Nesse momento estou lutando contra minha culpa enquanto estou tonta, alternando entre meu trabalho jornalístico e meu pesadelo. O porão é invadido por abutres e existem 28 pessoas com sede. Nem mesmo em meus sonhos eu posso lhes dar água. Eu cometo suicídio todo dia nesses 55 dias em que vivo na rua Bostanci número 23 no bairro Cudi em Cizre. Deixo todas minhas identidades para trás exceto aquela de ser humano.

Dar água a alguém em necessidade é mais difícil que morrer e morrer de novo. Tantas vezes eu morro em meus pesadelos. Ou acabamos como Kevin Carter ou fazemos tudo ao nosso alcance para dar um copo de água. Se necessário devemos morrer – não em nosso pesadelo – mas na vida real. Se nossa consciência morrer no porão, nós morreremos a cada dia. Precisamos iluminar o porão e precisamos trazer a luz da realidade as pessoas. As pessoas em Cizre não ousam beber água por terem vergonha que podem beber enquanto seu companheiros estão presos no porão, morrendo de sede.

Já conheceu alguém com vergonha de beber água? Eu já e não tenho a habilidade de descrever para você. Um homem que testemunhou os ataques dos anos 90 (uma década marcada pelo abuso dos Curdos pelo estado turco) sentou próximo a mim: “Nós perdemos todos nossos companheiros e heróis. Como devemos viver,” ele disse, desmoronando, soluçando. Não diga que homens não choram pois em Cizre, eles choram.

Creio que algum dia os abutres irão deixar a rua Bostanci número 23 e o sol irá nascer onde agora existe uma grossa fumaça negra.

Nós jornalistas não cometeremos suicídio devido a uma consciência culpada como Kevin Carter. Nós vamos iluminar esse porão e contar a verdade.

Enviamos nossos cumprimentos a nossos colegas que vieram aqui de Istanbul para apoiar jornalistas que estão colocando suas vidas em risco para noticiar as realidades do Norte do Curdistão (Sudeste da Turquia).

Vamos proteger as vidas no porão contra os abutres!

Jornalista Asya Tekin

8 de Fevereiro, 2016

Cizre